domingo, 24 de abril de 2011

Os dois lados da Moeda

O Bicho

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.

Manuel Bandeira
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"Não procuro entender a vida, porque se eu passasse o meu tempo tentanto entendê-la, eu não a viveria."

A vida é uma coisa bizarra né. Aliás, ela é muito bonita, e muito louca também. Nada que não me desperte a curiosidade de observá-la, de longe. E ao mesmo tempo de perto, de dentro dela própria. Afinal de contas, eu a vivo.

As coisas são meramente engraçadas, e quando você pára pra pensar nelas, elas se tornam sérias, reais, e muitas vezes amargas.

Sempre adorei desenhos, especialmente Pica-Pau e Tom e Jerry. Esse último pelo simples fato do Gato nunca conseguir pegar o Rato. Mas parei pra pensar sobre outro ponto de vista.

Quando cursei minha primeira faculdade (Artes Plásticas), meu professor de Piano me contou uma história curiosa sobre quando ele tinha 15 anos de idade, onde teve a oportunidade de ir estudar piano na Espanha. Acontece que ele recebeu a notícia de última hora, e teria de decidir ali, no ato. Naquela época os meios de comunicação eram difíceis, e ele não teria como se comunicar com sua família com tanta facilidade nos próximos dez anos de sua vida, quando estivesse no conservatório Espanhol. Ele tinha duas escolhas. Ou iria sem poder avisar sua família, e se formaria um exímio e virtuoso pianista, ou então ficaria, e abdicaria da oportunidade de ter ido para lá.

Ele me disse a seguinte frase: Você sempre vai se deparar com duas estradas na sua vida. Sempre haverá duas escolhas, e você deverá optar por uma delas, e jamais deverá pensar se a outra estrada teria sido melhor.

Ele optou por ficar (perto de sua família) e não ir à Espanha.

Naquele momento parei pra pensar em todas (sim, eu escrevi todas) as etapas da minha vida, as quais me deparei com situações semelhantes. As duas estradas.

Elas existiram. Eram reais. E eu fiz as minhas escolhas, sem as quais não estaria nem aqui escrevendo este texto em uma madrugada de um sábado de Aleluia para um domingo de Páscoa.

Sempre admirei essa dualidade da vida. Bem e Mal. Claro e Escuro. Preto e Branco. Tom e Jerry. O que me faz parar pra pensar é se essa dualidade tem de existir em todas as circunstâncias.

Tenho um grande amigo, o qual trabalha comigo, que foi a um casamento um dia desses. Perguntei como havia sido o casamento, pois ele estava comentando há um certo tempo sobre a data. Disse-me que foi lindo, mas que ele ficou em choque com o que viu antes de entrar na festa.

Um homem (como todos os outros), feito de carne, ossos, sentimentos e idéias, estava abaixado, sobre seus joelhos ralados e sujos, bebericando a água da chuva em uma poça no meio da rua.

Este meu amigo o observou, calado e à distância. O sujeito bebia a água com sofreguidão. Parecia um cão morrendo de sede, como quando o dono coloca água em seu recipiente. Mas o recipiente do homem era a rua. O Asfalto.

Ali, abaixado, o homem engoliu vorazmente a água sem ao menos se dar conta dos olhos que o observavam.

Minutos depois este meu amigo deixou de observar o homem bebendo água do asfalto para entrar na festa e beber em uma taça de cristal legítimo o Champagne Francês mais caro que já havia visto.

E se perguntou (bebendo): Por quê? Por que isto? Por que esta disparidade? Por que esta diferença abismal entre duas pessoas humanamente iguais?

Eu me pergunto: Por quê? Por que isto?
Eu te pergunto: Por quê? Por que isto?

Talvez essa dualidade seja a dualidade que não é mostrada nos desenhos. Talvez seja a dualidade que o mundo não quer enxergar.

Talvez seja a dualidade que o mundo finge não enxergar.



Os tiros que calaram o Brasil

"O que, pra mim possa parecer mais uma loucura da mente humana, incendiada por artífices da mídia influenciante, para muitos é considerado diversão. E diversão Sádica, talvez sem fundamentos. Mas é o fundamento que gera a concepção dos Fundamentalistas. Aqueles que lutam cegamente por um objetivo e um ideal único, a ponto de sacrificar a própria vida pela vida dos que virão futuramente, em seu círculo social. Um ato materno? Não. Mães, sejam elas humanas ou animais, em sua maioria irracionais, praticam atos em prol de cultivar a vida futura, e não arrancá-la em seu berço inicial."

O dia era quinta-feira. A hora, o almoço. Sentei no sofá de uma pequena sala no meu escritório, estiquei as pernas, concentrado-me em meu mais novo Livro, o qual eu lia avidamente, e comecei a folhear as páginas, até que uma notícia irrompeu aos meus ouvidos.

"Massacre no Rio. Jovem entra em escola e mata 12". A notícia era apenas mais uma, como tantas outras que ouvimos, vindas de Columbine, Virgínia ou outro ponto qualquer do Hemisfério. Mas havia uma coisa que a diferenciava. O Brasil.

Agora, a matança era entre nós. Nós, que nos deparamos dia após dia com atos fundamentalistas, sem fundamentos.

O Jovem caminhava com sua câmera, filmando a escola, a qual havia sido invadida por um lunático, o qual tinha aopenas uma única e específica finalidade: matar.

Não importavam quantos, e não importava quem. O que importava não era o sujeito, e nem o predicado. O que importava era apenas o verbo. Matar.

O cinegrafista caminhava a esmo pelo quarteirão da escola, filmando pessoas em conglomerados semelhantes a formigueiros. Todos andavam e gritavam feito coiotes no uivo da noite, esperando pela ajuda da lua, que não aparecia atrás das nuvens escuras.

Crianças largadas na sarjeta, feito porcos ao relento, como se fossem indigentes. Ensanguentadas. Dos pés às cabeças. Muitas gritavam, feridas, sem saber nem onde o tiro havia atingido.

Eu sabia. Naquela hora eu soube que o tiro havia atingido o coração da Sociedade. As páginas do meu livro já não se moviam. Minhas mãos pressionavam com força a capa do livro com a imagem de um dragão, circundado por fogo.

Fogo era o que havia em meus olhos. Fogo era o que havia no coração da Sociedade.

Por um instante qualquer, a Sociedade viu-se inerte a um ato que a calou.

A câmera tremia e as pessoas tremiam junto com ela. Tremiam de medo e de frio. Tremiam de calafrio. O calafrio que percorre a espinha da mocinha no filme do Drácula, na hora em que ele se prepara para atacá-la.

O calafrio que percorre a espinha da Sociedade no filme da vida real, quando se vê diante de um inimigo invisível. A violência impune.

Gritos ecoavam de dentro da escola. Pessoas perdidas feito moscas em meio à produtos químicos que causam tontura e morte. Andavam de um lado para o outro, sem saber de onde vinham e sem saber para onde estavam indo.

A câmera tentou subir um lance de escadas, e se viu deparada com uma multidão de pessoas tentando fazer o mesmo que ela. Parado, o cinegrafista vê o desespero nos olhos das pessoas.

Desespero. Desespero é o que a sociedade sente quando não pode fazer mais nada em relação a atos fundamentalistas como este.

Ele sobe, passa pelo guarda que ali estava e se depara com mais um lance de escadas, e ali ele pára. Pára diante da causa.

O corpo estava no chão, imóvel, feito um caixão em um velório. As mãos, sujas pela morte, seguravam uma arma negra com poder inimaginável. A outra mão estava com uma luva, como se estivesse se protegendo do fogo que a arma consome. As pernas eram como gravetos transpassados entre si, e a cabeça estourada mostrava os miolos feito repolhos jogados no chão ao final de uma feira de domingo. Ele estava ali. Ele, a causa.

Ali, a câmera o encarou solenemente. Ele nada fez, pois imóvel, fitava o nada. O vão. Vão que permanecerá na vida de 12 Famílias Cariocas por um período conhecido como Eternidade.

As pessoas na escola gritavam mais forte, e o cinegrafista ainda buscava uma resposta para aquele corpo parado à sua frente. De repente a câmera se moveu, deu meia volta e desceu a escada até sair da escola, minutos depois.

Esta é a história (real) de Wellington Menezes de Oliveira, 24 anos, e de 12 famílias do Bairro do Realengo, no Estado do Rio de Janeiro. A notícia de que um rapaz entrou numa escola do Rio com uma arma, assassinou 12 jovens e depois de ser baleado pela polícia local, suicidou-se, correu o mundo.

A barbárie inadmissível foi assistida pelos cantos do planeta, relembrando Columbine, relembrando Virgínia. Relembrando o que jamais deveriam ter de relembrar.

O ato alucinado só não foi mais grave por que toda história que tem um vilão precisa um herói. E o (nosso) herói chama-se Terceiro Sargento Alves, que entrou na escola e alvejou o Atirador de Realengo com um disparo no Abdomen, após ser avisado por uma das crianças que correu para buscar ajuda.

O Herói foi aplaudido de pé por todo o País, por ter evitado um massacre ainda maior. Mas a Polícia deveria ter sido aplaudida por ter evitado o massacre, e não por ter evitado um massacre maior.

Não é objetivo da Polícia remediar, e sim prevenir. A Polícia tem arma para impôr respeito. A Polícia tem farda para impôr respeito. A Polícia tem brasão para impôr respeito.

A Polícia tem arma, farda e brasão não para dar pêsames às vítimas da violência que ela mesma deveria evitar. A Polícia tem arma, farda e brasão não para dizer que é polícia, e sim para agir como Polícia.

Infelizmente o que deveria servir como escudo para uma Sociedade amedrontada diante da criminalidade serve apenas como Band-Aid para uma ferida que jamais cicatrizará por completo: A impunidade diante dos fatos.